O Quilombo dos Palmares e a resistência ao luso-colonialismo

Ontem assinalámos o Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravatura e do Comércio Esclavagista Trans-Atlântico.

Vários artigos e crónicas poderiam sair num dia destes quando se vive num país que tem na sua História o sangue de mais de 6 milhões de escravos traficados no Atlântico.

A infeliz ignorância em que vivemos em relação à dimensão dos crimes que Portugal cometeu é estrondosa. O comércio esclavagista chegou a um mínimo de 4 escravos por cada português livre. Foi algo tão brutal em força que possibilitou a construção e exploração do 5º maior país do Mundo, o Brasil.

Mas preferi não falar hoje dos criminosos, mas sim dos resistentes, nomeadamente os Quilombos no Brasil e o seu exemplo máximo, o dos Palmares.

  1. O achamento e colonização do Brasil

Começando de início: o Brasil é oficialmente cartografado pelos portugueses em 1500, apenas 1 ano depois de Vasco da Gama ter regressado da India, 8 anos depois Cristóvão Colombo ter achado as ilhas americanas das Caraíbas e 2 anos após o mesmo ter chegado ao Golfo do México.

Até aqui o colonialismo português tinha pouca necessidade da escravatura, embora a utilizasse frequentemente em Cabo Verde. Isto não é devido a nenhuma empatia portuguesa que os permitia explorar sem escravizar o resto do Mundo. Apenas havia um maior esforço para a guerra bélica e a conquista militar (Norte de África e India) e para a descoberta e manutenção da exclusividade das rotas marítimas de comércio. Nunca havendo um território para povoar, explorar e colonizar, a necessidade da mão-de-obra escrava era menor do que o seu custo de manutenção.

Isto muda com o Brasil.

Em 1504, D.Manuel atribui por Carta Régia a primeira capitania brasileira. Estas eram governadas por “donatários”, empreendedores da baixa nobreza e da burguesia que já se começava a desenvolver como classe social.

Este era um sistema que já havia sido implementado na colonização da Madeira e de Cabo-Verde (o primeiro com maior uso da imigração, o segundo com o tráfico esclavagista), e é consequência de várias tentativas falhadas de exploração do território brasileiro por parte da Coroa portuguesa e várias investidas de corsários estrangeiros no litoral do Brasil, principalmente franceses.

D. João III, filho de D. Manuel I, vai ser o monarca que mais desenvolve este sistema, criando ao longo do seu reinado várias capitanias hereditárias. O donatário adquiria vários dos poderes do rei: deveria com os seus próprios recursos, fundar e defender vilas e desenvolver colonatos, criar impostos que depois seriam também reenviados à Coroa, podia condenar ameríndios, escravos e homens livres à morte, espalhar a fé católica, podia escravizar ameríndios e especialmente deveria explorar os recursos naturais brasileiros. A Coroa tinha o monopólio do pau-brasil e das especiarias e recebia ainda 20% de todas as pedras preciosas encontradas ( o donatário tinha direito a outros 10%).

As capitanias tiveram no geral enormes problemas no seu desenvolvimento: a mal-adaptação ao clima, os ataques de ameríndios e estrangeiros, dificuldades na aplicação da Justiça, a falta de comunicação entre as várias capitanias e destas com a Coroa, falta de recursos humanos – que cria uma necessidade nunca antes vista de mão-de-obra escrava, entre outros.

A excepção a esta regra são as capitanias de Pernambuco (também chamado Nova Lusitânia, primeira capitania a ser criada) e de São Vicente, maioritariamente devido ao enorme tamanho que as mesmas adquiriram permitindo uma vasta exploração de recursos alimentares, a sua proximidade às rotas mercantis e de tráfico esclavagista e a enorme produção de cana-de-açúcar.

Em 1548 para colmatar as falhas administrativas do território cria-se um governo central. O tráfico de seres humanos de África para a América e a destruição das culturas nativas foram as respostas mais comuns para o desenvolvimento da exploração de recursos. Uma política genocída e esclavagista em toda a linha.

2. A Guerra da Sucessão

D. Sebastião, neto e sucessor de D. João III, coroado rei com 3 anos de idade, morre famosamente na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578, aos 24, criando no Império Português uma crise de sucessão à Coroa, visto não haver deixado descendentes.

As Cortes viram-se umas contras as outras numa luta entre candidatos das várias classes sociais. D. António, prior do Crato, rei aclamado pelo Povo, acaba mesmo por entrar em guerra com D. Filipe II de Espanha, rei aclamado pela Nobreza e Burguesia.

Este enorme conflito de 5 anos retira enormes recursos financeiros, humanos e bélicos e desviaram todas as atenções burocráticas para a crise dinásticas e a eventual Guerra da Sucessão em 1580.

3. A Resistência Negra nos Quilombos

Ao longo de 300 anos de escravatura no Brasil colonial temos mais de 38 revoltas contra o Império esclavagista português, num movimento que incluiu mais de meio milhão de pessoas – intercalado com vários movimentos de emancipação negra a nível internacional, com enorme destaque para a Revolução Haitiana.

Desde do início da colonização do Brasil que existiu resistência ao sistema esclavagista e comumente existiam casos de suicídio, assassinatos dos senhores, fugas e até organizações culturais

Apesar de serem desde dessa altura e até à atualidade a maioria da população trabalhadora os ameríndios e as pessoas negras são vastamente ignorados da História para retirar a nossa de Resistência da nossa memória histórica enquanto classe oprimida.

Esta resistência vê nos Quilombos a sua maior materialização histórica. Aqui o trabalho escravo e a relação de forças violenta eram negados ao se formar um colonato resistente de pessoas que haviam sido traficadas.

Quilombo vem da palavra da língua banto umbundo Kilombo e refere-se a uma instituição militar dos povos jagas ou imbagala da África Central, dos atuais Congo e Angola.

Ao longo dos anos assistiu-se à formação de inúmeras centenas de Quilombos. É importante ressalvar que estes não foram meia dúzia de casos isolados restritos ao imperialismo português, mas sim fenómenos internacionais de resistência anti-colonial, que aconteceram durante séculos, resistiram durante décadas e que nunca as derrotas de uns abrandaram a resistência de outros e a formação de novos.

Em 1740, a Coroa portuguesa definiu Quilombo como “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles”. Passava uma imagem de propaganda dos Quilombos, pintando-os como antros de ladrões e assassinos e alimenta sentimentos de xenofobia e racismo entre os colonos. Muitas vezes causou inclusive um receio das pessoas negras de se associarem aos Quilombos, mesmo os que até hoje descendem desta cultura.

4. O Quilombo dos Palmares

Provavelmente o maior exemplo da resistência anti-colonial dos Quilombos é o Quilombo dos Palmares.

Este é formado em 1580 – no início da Guerra da Sucessão – por escravos fugidos dos engenhos (produção de açúcar) da Capitania de Pernambuco. A zona montanhosa na floresta que separa os atuais estados de Pernambuco e de Alagoas serviria de local para um episódio de resistência incrível que haveria de durar até 1710: os Palmares.

O impacto destes 130 anos de resistência é notável quando percebemos que este Quilombo é considerado o berço da capoeira e que chegou a ter no seu principal mocambo (povoamento, Cerca Real do Macaco) mais de 6 mil habitações em 1670 (a maior cidade brasileira da época, o Rio de Janeiro, contava com 7 mil), alguns historiadores apontam para uma população de mais de 20 mil pessoas (talvez ultrapassando as 30 mil). Os seus membros vinham de várias regiões do Nordeste brasileiro, e eram na sua na sua maioria pessoas negras, mas também se contavam pessoas mestiças, pessoas brancas pobres e ameríndios.

Há que perceber que esta era de facto a classe trabalhadora brasileira da época, mesmo que sem consciência de si própria, tornando Palmares um sítio de resistência e diversidade.

5. A organização do Quilombo dos Palmares

A principal atividade económica dos quilombolas era a agricultura, a caça, a pesca, a recolha de frutos (nomeadamente o caju e ao abacate, entre outros) o artesanato e o comércio. Sabemos que existia uma abundância alimentar que permitia não só as trocas comerciais de alimentos, mas também o seu armazenamento, gestão e repartição de forma a impedir a existência de fomes e escassez.

Não existia propriedade privada da terra, esta estava repartida e era atribuída a todos os quilombolas que teriam que trabalha-la. Toda a produção era dada ao Conselho que reunia os representantes dos vários mocambos, que depois a repartia entre toda a população. A venda da terra era proibida. A posse (propriedade pessoal) também não existia sendo provável um sistema de coletivização social e socialização dos meios de produção. Também não existia dinheiro.

As classes sociais no Quilombo dos Palmares são dos assuntos mais controversos da sua História mas não existe registo que de facto existissem para além da aglomeração nuclear de certas etnias africanas por diferentes mocambos que deveriam escolher um representante para o Conselho com idêntico poder que todos os outros.

O Conselho tomava decisões de forma democrática e por consenso. O seu líder (vulgo “chefe” ou “rei”) era eleito pela base – aclamado pelo povo em Assembleia Geral dos Quilombolas – e poderia ser deposto. As mulheres participavam tanto neste Conselho como na organização económica e militar.

O sistema social era a poliandria – a base familiar era composta por direito matriarcal em que uma mulher possuía vários companheiros.

Militarmente capacita-se a noção de armar o povo para a sua própria auto-defesa. A ação militar estava centralizada no mocambo de Subupira que contava com cerca de 800 habitações.

Embora hajam autores que queiram malear a História para condizer com as suas crenças, o Quilombo dos Palmares não apresentava escravatura (lembrando até que o conceito seria impossível numa comunidade sem propriedade ou posse). No entanto também é preciso lembrar-nos que esta era efetivamente uma sociedade do século XVII com raíz nas tradições culturais africanas da altura. Dito isto, houve alturas em que os prisioneiros de guerra (maioritariamente atacantes, por vezes colonos feitos reféns na guerrilha) teriam que realizar trabalho obrigatório temporariamente como uma forma de punição. Estes prisioneiros em nada se comparavam aos escravos dos europeus, beneficiando de mais direitos e tendo a garantia da sua liberdade no final da sentença.

6. Anti-esclavagistas

Após as Guerras Luso-Holandesas (consequência da Guerra da Restauração da Independência, em que a Holanda, que já havia atacado regiões pertencentes à Coroa de Habsburgo, da qual também afirmou a sua independência, aproveitou o conflito luso-espanhol para tomar Pernambuco para si, sendo a região depois restaurada para o domínio português) existe um esforço – por necessidades económicas – de redesenvolver a produção de engenhos de açúcar na região.

No entanto, falta mão-de-obra e a capacidade portuguesa de escravizar e traficar seres humanos já não é a mesma de há 200 anos atrás.

A prosperidade económica de Palmares já era demasiada para ignorar a este ponto, e os portugueses retomam várias investidas militares contra o Quilombo, todas sem sucesso. Como antes, e como com os espanhóis e holandeses, Palmares sai invencível. Seriam precisas 18 investidas militares desde do fim do período holandês (1654) para derrotar os quilombolas.

Em 1677 o governador-geral português oferece um tratado de paz a Ganga Zumba, líder dos quilombolas que havia introduzido um estilo de ofensiva muito semelhante à guerrilha. Neste tratado todos os quilombolas nascidos em Palmares continuariam pessoas livres e receberiam umas terras (inférteis) na zona de Cocáu. Todos os escravos que tivessem fugido para Palmares seriam reescravizados.

Sabemos que a maioria da população estava contra este acordo por motivos óbvios, o que faz com que os portugueses intervenham, ajudando a envenenar Ganga Zumba e a subir ao poder o seu irmão Ganga Zona, aliado dos portugueses.

A Assembleia Geral não permite este acordo, ou esta liderança, retoma Palmares e proclama o líder militar e sobrinho dos Gangas, Zumbi, chefe dos quilombolas.

Zumbi era um líder astuto e fomentou mais ataques de guerrilha contra as povoações portuguesas com engenhos. Aqui, adquire uma postura nova: esta guerra é feita para 1. danificar estratégica e economicamente os portugueses, 2. adquirir armas, 3. libertar escravos, a maioria dos quais se junta aos quilombolas.

Com Zumbi nasce uma verdadeira postura anti-esclavagista, já verificada com outros líderes, mas que com este adquire um verdadeiro sentido emancipatório: a libertação de escravos torna-se uma prioridade do Quilombo.

7. O fim

Em janeiro de 1694, após novo ataque falhado, os portugueses organizam nova ofensiva, incluindo esta artilharia e um regimento de 6 mil homens. Apesar de mais um insucesso conseguiram fazer um prisioneiro de valor: um quilombola que a troco da sua liberdade estava disposto a revelar a localização do acampamento de Zumbi.

Após esta traição, Zumbi é encurralado e morto a 20 de novembro de 1695.

A sua morte foi tão significativa para a nobreza e latifundiários que é anunciada ao rei de Portugal com grande pompa e a sua cabeça é posta no topo de um mastro, em praça pública, no Recife.

Sem a liderança de Zumbi, o Quilombo vê-se atirado para um período de decadência, acabando engolido pelo Império Português em 1710. O dia do seu assassinato foi em 2011 feito Dia Nacional da Consciência Negra no Brasil.

Esta é uma história inspiradora de resistência e sacrifício em que conhecemos um povo que durante mais de um século se recusou a ser escravo e partindo do nada criou das civilizações mais florescentes, democráticas, multiculturais e igualitárias de todo o século XVII. A sua força apaixonante viverá sempre em que luta por uma sociedade mais igual, ontem, hoje e sempre.

“Por menos que conte a História / Não te esqueço meu povo / Se Palmares não vive mais / Faremos Palmares de novo” – José Carlos Limeira

Rodrigo A. Silva

Desigualdade é inevitável em economias de livre mercado, demonstra artigo científico

Um dos maiores problemas econômicos da atualidade, que ameaçam o sistema económico capitalista atual, é a crescente desigualdade de riqueza entre pessoas. Muitos economistas tentam criar mil e uma soluções para a desigualdade sem tocar no problema essencial, o modo de produção capitalista combinado com o livre mercado, mas um artigl de distribuição de riqueza partilhado pelo site da “Scientific American” demonstra a inevitabilidade da desigualdade na nossa economia.

O artigo, que pode ser visto aqui, usa vários modelos e exemplos, uns mais simplificados, outros mais complexos, para chegar à conclusão que, mesmo numa economia de livre mercado perfeita, absolutamente justa, sem que nenhum agente (ou pessoa) comece numa posição melhor que as outras, é inevitável a concentração de riqueza numa ou em poucas pessoas, os oligarcas, enquanto o resto fica na pobreza total.

O artigo conclui que, ao contrário do profetizado por muitos apoiantes do capitalismo e neoliberalismo, a riqueza tende a ir dos mais pobres para os mais ricos, não ao contrário, e que apenas a redistribuição de riqueza impede esta tendência.

Em conclusão, ao contrário do que é normalmente assumido na nossa cultura e sociedade, este artigo prova matematicamente e cientificamente que o livre mercado não é uma plataforma estável que, através dos mecanismos da procura e oferta, acaba por satisfazer as nossas necessidades, mas sim um sistema que perpetua a desigualdade e assegura o poder dos “oligarcas”, ou por outras palavras, dos capitalismo.

Concluímos portanto que apenas uma nova sociedade, baseada numa economia democraticamente planeada e com radicalmente diferentes formas de organizar a produção e o consumo podem acabar com o cancro social que é a pobreza e a desigualdade.

Fontes: Scientific American