Entrevista ao Coletivo Feminista de Letras: “O feminismo tem de ser universal e interseccional, de forma a englobar todas as mulheres em várias condições, sejam financeiras, físicas, psicológicas ou até no que toca à identidade sexual e identidade de género”

Inúmeros estudos têm vindo a ser divulgados no que à desigualdade de género diz respeito. Aumentaram os casos de violência doméstica com os sucessivos confinamentos (https://www.rtp.pt/noticias/pais/pandemia-esta-a-contribuir-para-o-aumento-da-violencia-domestica_a1292833), a desigualdade de género prevalece no que aos cargos políticos diz respeito (https://cutt.ly/7xKdJrf) as mulheres estão mais vulneráveis por estarem na linha da frente do combate ao vírus (70% dos profissionais de saúde no mundo são mulheres, dados da OMS-https://cutt.ly/AxKoIsO) e encontram-se cada vez mais sobrecarregadas com trabalho não só no emprego como também em casa.

No entanto, existe quem não se resigne. Decidimos então, ainda na ressaca da celebração do dia da mulher dia 8 de março e das lutas organizadas dia 7 de março no Porto e 13 de março em Lisboa pelo Movimento Democrático de Mulheres, entrevistar o movimento estudantil conhecido por Coletivo Feminista de Letras para tentar perceber a realidade da luta pelos direitos das mulheres.

Este coletivo organiza-se na faculdade de Letras da Universidade do Porto e já organizou uma série de eventos. Surgiu com o propósito de “criar um espaço de reflexão e debate sobre o movimento feminista e as diferentes formas de repressão e violência exercidas sobre as mulheres”. Desde debates e conversas entre estudantes a projeções de filmes, este coletivo funciona de e para os estudantes.

Porque é que decidiram criar o coletivo, e como foi a experiência de criar o
coletivo?

O Coletivo Feminista de Letras nasceu da necessidade de criarmos um espaço de reflexão sobre as várias opressões de que as mulheres são alvo, de nos mobilizarmos contra o machismo presente na academia e de pensarmos formas de organização feminista e anticapitalista dentro da faculdade.
Quando criámos o nosso coletivo, não existia nenhum com este formato em nenhuma universidade do país. Algumas companheiras conheciam companheiras brasileiras que lhes contaram a experiência de organização dos coletivos feministas nas faculdades no Brasil. A partir daí, surgiu a ideia de trazermos esse formato para Portugal, mais concretamente para a FLUP. No início, éramos um grupo muito pequeno e fomos recebidas com muita hostilidade na faculdade, escreviam ataques nas casas de banho, sabotavam as nossas atividades, etc. Fizémos uma atividade sobre o machismo na praxe que encheu um auditório com mais de 100 pessoas, passámos filmes subversivos e criámos espaços de debate que não existiam antes.

Que problemas mais específicos enfrentam no dia a dia?
Desde o início do Coletivo Feminista de Letras que, sempre que lançávamos campanhas, muitas delas eram vandalizadas dentro da própria faculdade. Temos uma campanha, agora em pausa devido ao confinamento, relativa à equidade menstrual e ao combate à pobreza menstrual, que não foi muito bem recebida por vários membros da comunidade académica e estudantil, visto que os postos onde estavam os produtos de higiene menstrual foram vandalizados. Nesta nova realidade desde 2020, o maior obstáculo tem sido o facto de termos de realizar todas as campanhas e atividades de consciencialização, de discussão política, culturais, de forma online, não tendo um impacto tão grande como se fosse presencial. Mantemo-nos ativas e a realizar eventos junto da comunidade académica e não só, e acreditamos que são produtivos para quem neles participa e para nós também, tendo em conta que estamos em constante aprendizagem.

Como é que as pessoas reagem à vossa intervenção?
No geral, as respostas têm sido muito positivas e temos tido bastante apoio e intervenção do público. Temos consciência que o trabalho que fazemos é importante e tem de ser discutido na sociedade dos dias de hoje. Contudo, em assuntos denominadamente mais polémicos, temos respostas muito negativas de pessoas, sobretudo homens, que se recusam a aceitar os ideais que o coletivo defende, chegando, por vezes, a ameaçar o coletivo como um todo e acusá-lo de ser extremista.

Quais são as causas do machismo/patriarcado e quão estão relacionadas com a
luta de classes?

Acontece que o capitalismo incorporou o patriarcado e acentua as desigualdades entre homens e mulheres, afetando sobretudo as mulheres de classes mais pobres, da mesma forma que acentua o racismo. Desta forma, o feminismo também vem a reforçar a luta de classes, visto que muitos dos movimentos feministas começaram com a revolta da mulher da classe trabalhadora. O capitalismo surge como um sistema repressivo não só para mulheres mas para todas as minorias. Achamos necessário que o feminismo seja anticapitalista e antirracista, porque só desta forma é que poderemos assistir à queda do patriarcado. Tudo isto referido anteriormente só poderá ser abolido através da luta de classes. O feminismo encontra-se ao lado do socialismo e a igualdade só será alcançada quando todos e todas tivermos as mesmas oportunidades, sem preconceitos e discriminações.

De que forma é que as pessoas podem educar-se e envolver-se na luta
feminista?

Primeiramente, as pessoas podem começar por pensar e analisar certos acontecimentos do quotidiano, refletindo e colocando questões. Após este processo, as pessoas irão ganhar uma maior consciência para a luta feminista e irão perceber em que tipo de sociedade é que vivem. Ao analisar não só a sua situação, mas principalmente a situação de outras mulheres que sofram de diferentes opressões, o público pode perceber que a luta feminista ainda tem um longo caminho a percorrer. Mesmo que a pessoa em particular não tenha a
oportunidade para integrar uma organização ou um coletivo como o nosso, aconselhamos sempre que se manifestem de forma a que a sua voz seja ouvida, em organizações, em movimentos, em partidos políticos, nas ruas, participando em eventos, tirando, assim, proveito de todos os recursos possíveis para ampliar as vozes das mulheres.

Quais são os principais problemas dentro do movimento e do ativismo
feminista?

Pensamos que neste momento um dos maiores problemas no feminismo trata-se do denominado feminismo liberal que dá uma falsa ideia de feminismo e não engloba todas as mulheres. O feminismo tem de ser universal e interseccional, de forma a englobar todas as mulheres em várias condições, sejam financeiras, físicas, psicológicas ou até no que toca à identidade sexual e identidade de género. O maior problema do movimento feminista é que certas variantes visam um feminismo muito generalista e individualista que não salvaguarda os direitos de todas as mulheres. O ativismo feminista tem de ser interseccional, pois se não
é para todas então não é feminismo. Quando se torna seletivo ou demasiado generalizado, pensamos não se tratar de um ativismo eficaz.

Em que medida o ressurgimento da extrema direita constitui grandes retrocessos na luta feminista?
A extrema-direita é uma enorme ameaça aos direitos das mulheres, visto que defende uma visão extremamente ultrapassada de como a mulher deve existir na sociedade. O crescimento de movimentos de extrema-direita, como está a acontecer em Portugal inclusive, coloca em causa os direitos das mulheres e todos os marcos na luta pela nossa emancipação que foram atingidos até agora.
A onda crescente da extrema-direita conservadora tem como objetivo calar as
mulheres e mantê-las submissas. Tendo em conta que grande parte dos marcos relevantes para as mulheres, sobretudo mulheres de classe trabalhadora, se devem a enormes contribuições da luta marxista e socialista para a luta feminista, é certo que a luta das mulheres constitui uma ameaça para a extrema-direita conservadora e capitalista.


Sendo nós um jornal, queríamos perguntar se o coletivo e o feminismo tem a
exposição necessária nos meios de comunicação?

Pensamos que nos dias de hoje, felizmente, o feminismo está a ganhar mais destaque nos meios de comunicação, especialmente nas redes sociais. Ainda assim, muitas vezes é um feminismo liberal e não inclusivo de todas as mulheres; não focando nos problemas sobretudo das mulheres das classes económicas mais baixas. A exposição nos órgãos de comunicação social, como a televisão ou jornais, é insuficiente e torna-se num problema para o movimento, cujo objetivo é chegar a mais mulheres quanto possível. Muitas mulheres não têm o mesmo acesso aos meios de comunicação ou tempo para se envolver nas questões de género, o que exige um esforço acrescido por parte das organizações e coletivos feministas, para que a luta pela emancipação das mulheres não se perca dentro da redoma das redes sociais. É necessário que essa luta seja feita nos espaços públicos, nos locais de trabalho, nas faculdades e nas ruas, politizando o máximo número de mulheres possível. Relativamente ao coletivo, pensamos que vai ganhando cada vez mais visibilidade com o passar dos tempos, com mais colegas interessadas em participar, sendo o nosso objetivo chegar a um grupo cada vez maior.

Como é que o feminismo ajuda e ajudou as mulheres em situações económicas mais precárias?
As mulheres operárias tiveram e continuam a ter um papel fundamental na luta pelos direitos das mulheres, reivindicando melhores salários, horários de trabalho dignos, direito à maternidade e paternidade. O feminismo é uma forma da sociedade avançar e se tornar mais democrática, exigindo a autodeterminação dos povos, a libertação de todas as mulheres da exploração, da submissão, desejando o fim do patriarcado. Pensamos que apesar de todas as conquistas que temos até hoje, como o direito ao voto e à participação democrática na política do país ou o direito à interrupção voluntária da gravidez, o feminismo, de forma a ter consequências positivas concretas na vida das mulheres mais pobres, tem de ser incorporado no dia-a-dia de todas e todos, tem de ser normalizado em conjunto com a luta de classes, e tem de ser uma luta constante e que ocupe o espaço
político. A consciencialização para a falta de habitação, falta de emprego, pobreza
menstrual e para os casos de femicídio e transfemicídio que temos vindo a assistir nos dias de hoje, bem como a reivindicação do fim das propinas no ensino superior e reivindicações de direitos laborais, a importância do reconhecimento do trabalho reprodutivo, são questões fundamentais na luta feminista para que se ponha um ponto final na violência contra as mulheres.

Quanto à pandemia, como tem sido a situação das mulheres precárias e
como tem sido possível manter o ativismo?

No contexto de pandemia, é de conhecimento geral que a situação das mulheres precárias tem vindo a ficar cada vez pior. Se estivermos a falar de pobreza, é verdade que, a cada dia que passa, mais mulheres se encontram numa situação precária. Não podendo trabalhar “a 100%” devido a todas as restrições, as mulheres continuam a ser empurradas para realizar praticamente todas as funções relacionadas com a lida doméstica. Em casa, para além de realizarem o seu trabalho remunerado, ainda se veem na obrigação de realizar a maioria
das tarefas domésticas e cuidar dos filhos. Esta pandemia empurrou muitas mulheres novamente para esta posição e fez com que, em certos casos, as mulheres tivessem de conviver com o seu agressor todos os dias, em casos de violência doméstica. Todos estes fatores colocam em risco a posição da mulher na sociedade, tendo inclusive sido comprovado que, durante a pandemia, foram publicados mais artigos científicos elaborados por homens do que por mulheres, pelo que esta situação de disparidade de género se reflete também no meio académico e não só laboral.

Um muito obrigado ao coletivo pelo tempo disponibilizado. O Jornal Bandeira Vermelha deseja a maior sorte para todas as lutas que se avizinham.

Contactos do Coletivo Feminista de Letras:

coletivofeministaletras@gmail.com

https://www.facebook.com/coletivofeministaletras/

Deixe um comentário